Essa semana tenho ficado bastante tempo no Facebook. Não que eu goste de Facebook, mas por motivos profissionais. Eu tenho que ganhar dinheiro prá complementar a renda da casa e faço isso vendendo artesanato. E meu público (e, principalmente, os organizadores de eventos onde eu vou vender artesanato) é usuário do Facebook, e é mais fácil que eles leiam minhas mensagens na rede social, que eles leiam meus e-mails.
Essa semana, muitos posts sobre pré-julgamento, julgamento mal informado e preconceito, têm me chamado a atenção. Nem vou comentar os ativisitas de esquerda e de direita, as girafas, as brincadeiras inocentes com a beleza afro, posts preconceituosos contra pessoas de sexualidades ou religiões diferentes, essas coisas. Também não vou comentar o cara prá quem diversos impropérios se aplicam que falou coisas de muito mal gosto sobre a mulher que faz mais doações a bancos de leite materno no Brasil em rede nacional, em nome de um suposto humor, que é, na verdade, deboche desmedido e deshumano. Mas um post vindo de Porto Alegre, que chegou à minha timeline ontem. Ele mostra uma moça aparentemente jovem, lendo um livro sentada num lugar para pessoas com necessidades especiais, e um senhor da terceira idade em pé. Quem postou a foto, colocou uma legenda dizendo que os livros, em tese, tornam as pessoas mais inteligentes, mas, na opinião dele, não era isso que estava acontecendo com aquela moça.
Essa foto me indignou, como a muitas outras pessoas. Perguntei para a pessoa que compartilhou, se ela sabia se aquela moça não tinha algum problema nas pernas. Ela disse que achava que a pessoa que tirou a foto deve ter verificado. Mas gente, como ele ia verificar se estava sentado (é, ele tbm não eu lugar pro idoso, ou, se deu, foi depois de tirar a foto prá ganhar likes e shares e se tornar pseudocelebridade) e se nem todos os problemas são visíveis? Eu não consegui segurar os dedos. Escrevi uma resposta longa, que compartilho abaixo:
A pessoa que tirou a foto também estava sentada… e num ângulo específico em que ela talvez não pudesse ver. Eu falo isso porque tenho desgaste na articulação do tornozelo esquerdo, tenho que andar enfaixada toda a vez que saio de casa, e não posso tomar “trancos” ou fico uma semana com dor (e às vezes sem conseguir andar). Embora eu fuja de banco reservado que nem diabo foge da cruz, tem dia que eu acabo sentando. Só que se eu estou de calça e calçado fechado, ninguém vê que eu tenho nada de “errado”, porque eu coloco meia por cima da calça (e, felizmente, tenho duas botas não “ortopédicas” que eu consiga usar sem dor, embora seja muito difícil encontrar uma. Às vezes mesmo de sandália não dá prá ver que meu pé está enfaixado, dependendo do tipo de calça, e se eu estiver de sandália e meia (se meu pé tá muito inchado e não cabe na bota é isso que eu faço).
Tenho 29 anos e desgaste na articulação do tornozelo desde os 27, graças ao meu ex-trabalho de professora pré-escolar, que eu não posso mais exercer por causa das constantes dores (mas também não fui “aposentada” nem tenho direito a vagas especiais) e, se estou com muita dor, sento, sim, no banco preferencial. E já tive de passar pelo constrangimento mais de uma vez de dizer para as pessoas que taxaram de mal educada “moça, repara na diferença de tamanho de um pé meu pro outro, eu tenho problema no tornozelo e não to aguentando a dor” ou mostrar o pé enfaixado… essa situação, acredite, é constrangedora tanto prá mim, quanto prá pessoa que faz isso..
Mas eu sempre fico achando que é mais para a pessoa, sabe? Muitas vezes eles ficam tão envergonhados, e as pessoas ao redor param prá olhar com uma cara tão de “xiii, tomou seu besta defensor dos frascos e comprimidos” que a pessoa acaba saindo de perto… E eu nunca falo brava, ou irritada. Porque se nos últimos três anos eu aprendi uma coisa, foi que o melhor jeito de ser respeitada em lugares públicos tendo um problema de locomoção é o sorriso.
Além disso, a mulher poderia estar grávida. “ah, mas não tá aparecendo barriga”. Mas para muitas das mulheres, a pior parte da gestação não é quando já estão com barrigão, mas os três primeiros meses. São os meses nos quais parte das mulheres têm enjoo, vomitam, têm crises de fraqueza… e se houver qualquer possibilidade de aborto, não podem fazer esforço físico. Muitas mulheres se sentem pior no seguindo e no terceiro mês de gestação do que no quinto e no sexto, com barrigões aparentes…
Minha mãe tem idade prá sentar em banco reservado. Ela não senta. Se alguém, independente da idade, oferecer, ela se sente humilhada e reclama. Ela diz não só que não é “velha” como que tem saúde o suficiente prá fazer o caminho em pé, se o banco comum não estiver disponível. Meu pai é mais simpático, e às vezes senta, prá ir ler. Faltam ainda uns poucos anos prá ele ser da terceira idade, mas as pessoas acham que ele é mais velho. Ambos aguentam andar mais, e ficar mais tempo em pé, do que eu. Conheço senhores e senhoras de mais de 80 anos muito mais saudáveis do que eu. Me orgulho disso? Absurdamente, não. Isso abala minha auto estima profundamente, e me torna uma pessoa muito preocupada com o futuro. Fora o fato de que, por ter diversos exercícios físicos que eu não posso fazer, eu estou engordando. Hoje, se alguém reclama de que eu estou no lugar reservado, ou sendo tão jovem e vendo que tem um velhinho de pé não levanto, independente do banco, prá dar lugar, há quem me defenda com um “você tá cega? a menina está grávida” de tão gorda que eu estou…
Enfim, conhecer diversos tipos de gente, de mães com seus bebês e mulheres que não conseguiram engravidar a pessoas com visão baixa a transsexuais, e ter um problema tão chato (e crônico!) no tornozelo, me fez aprender que existe gente folgada, sim (e parece que mais no Brasil que em qualquer outro lugar do mundo), mas existe uma série de sutilezas que a maior parte das pessoas não vê, antes de sair julgando…
Por fim, prá encerrar o caso, tem comentários revoltantes na postagem principal, mas tem também alguns interessantes, incluindo esse, feito por uma moça chamada Daniele Brito “Eu conheço esse senhor. Sempre desce na estação Canoas. Ele tem alguma doença, ACHO que deve ser câncer de pele. Já vi muitas pessoas oferecendo lugar para ele no trem. E todas as vezes ele rejeita. Vejo que ele tem um certo receio, até mesmo pelas feridas que ele possui no rosto e na cabeça. Claro, a moça foi infeliz em estar sentada em um banco para idosos/gestantes e deficientes. Porém, eu não estava no trem para saber o que realmente havia acontecido e nem quero defender ela. Mas pelo ângulo da foto (talvez algum colega de foto ajude a analisar), a pessoa que fez o registro também está sentada.” Ou seja, a foto foi tirada por alguém que só queria provar seu desgosto pela humanidade e ganhar uns shares no Facebook, algo muito mais importante nos dias de hoje que, sendo saudável, levantar e dar lugar prá um velhinho…
A sociedade é muito mais complexa que o preto-no-branco que as pessoas costumam imaginar. E as fotos – já dizia uma professora minha da faculdade – são documentos muito traiçoeiros, pois, por um lado, aparentememente provam fatos sem precisar de palavras, mas, na verdade, fora de contexto podem ou ser documentos completamente vazios, ou dar margem a interpretações e julgamentos errôneos. Você não pode pressupor uma coisa ou outra, através de uma foto. Você nunca sabe o que estava por trás daquela foto, e a quem você está realmente humilhando com ela.
Se você quer encher a sua timeline de suposições e piadas, não precisa expor outros humanos à humilhação. Porque não postar cartuns e fotos de animais fofos ao invés disso? Porque não posta fotos onde você, e somente você, seja o protagonista? É muito melhor que julgar e apontar dedos a pessoas que muito provavelmente você sequer vá conhecer algum dia…